2020 e seus mais de 300 dias em luto
- Marcos Ferri
- 2 de nov. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 7 de mai. de 2022
Apenas um texto sobre o dia...
Por Marcos Ferri

Foto: divulgação
“Quando Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos...”
Não. 2020 não é um livro de Franz Kafka, mas acho que acordamos no dia primeiro de janeiro de alguma forma metamorfoseados, pois apenas dessa maneira conseguiríamos suportar um ano tão constante como essas duas dezenas de 20.
Digo constante, pois se uma coisa realmente é unanimidade é que ao longo dos últimos meses o medo, a lágrima, a tensão e tantos outros sentimentos fora da zona de tranquilidade seguiram dia após dia com cada um de nós.
Deu uma louca nos roteiristas da vida e resolveram passar a régua, fechar a conta, mudar o fluxo. Algo como “Brida”, novela da TV Manchete cortada ao meio e eliminada em 1998, sem desfecho, sem ponto final.
Estamos passando boa parte deste 2020 aprisionados. Uns em suas casas, num home office inesperado, outros em suas desgraças e frustações. A morte veio com seu machado para levar, só de ‘uma gripezinha’, 160 mil cabeças.
Os que sobreviveram para contar a história se endividaram, perderam empregos ou viveram tempos de sustos, temendo a visita da dona morte na forma patética de uma tosse.
É dia 2 de novembro e eu não fui ao cemitério. Sou uma desonra para minha família, pois me recuso ir à casa dos defuntos levar flores e me ajoelhar para uma prece. Busco sempre acreditar que uma oração em casa e uma piada remetendo a quem se foi, uma boa história daqueles que nos deixaram boas lembranças valem mais que óculos escuros tampando lágrimas.
Hoje o dia teve uma manhã fria e um entardecer de sol em São Paulo. Moro perto de uma mata e não quis me apegar muito a essa data dedicada a quem já partiu, mas um raio de sol bonito invadiu meu quarto lá pela cinco da tarde me fazendo parar um instante e tentar entender o pouco do que não conseguimos expressar quando nos vemos vivos em modo aleatório.
Mesmo fingindo ser só mais um dia e não questionando, mas também não aprovando os que descem a serra em busca de banho de mar e uma gelada para curtir, fiquei resguardado com notícias de partidas na TV.
O Louro José morreu. Falar disso é até bizarro. Acho que ninguém ‘normal’ pensaria em guardar luto por conta de um papagaio de borracha. Tolos. Tudo é muito mais que isso. Vai ser difícil brincar com a Ana Maria Braga agora, com suas trapalhadas e papos. Acho que a figurinha salva no WhatsApp não será enviada à toa por um bom tempo.
Guardei o dia para assistir “A Rocha”, filme de 1996 com o nobre Sean Connery. Um trabalho ignorado por uns, mas, para mim, um clássico incontestável. Parei para ver o filme tão somente para, de alguma forma, homenagear o icônico ator mais famoso por "007", "Os Intocáveis" e "O Nome da Rosa" do que por esse tiroteio sem fim que é esse blockbuster (não me contestem, o filme é maravilhoso e não aceito críticas).
Quando contei a meu pai que Sean Connery tinha partido, do alto de seus 90 anos e com demência (que palavra horrível e de sentido mais triste ainda), ele ficou com os olhos marejados.
Tanto Sean quanto Tom Veiga (a figura por traz do louro das manhãs brasileiras) eram amigos nossos qual nunca vimos pessoalmente, mas que tinham espaço em nossos lares, na rotina e nas boas lembranças que só coisas corriqueiras conseguem tornar tão especiais.
“A morte é triste”, já me lembrava uma crônica de Arnaldo Jabor.
Podia até ter uma placa em todos os cantos do mundo, como naquelas obras de engenharia, ou nas indústrias, com os dizeres juntos a um placar numeral: “Estamos há mais de 300 dias em luto”.
Além de não ir ao cemitério, também não fui à missa, como pediu (ordenou) Padre Sérgio, o vigário da paróquia. Fiquei na minha, digerindo o luto das celebridades, dos 160 mil levados pelo silêncio de um vírus, na paz dos meus queridos que já foram e com certeza mandaram aquele raio de sol às 17 horas de uma segunda-feira fria.
Deixo abaixo um vídeo que apareceu na minha tela no momento qual esse texto era escrito. Talvez outro presente de quem está tão perto e tão longe!
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