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Uma noite no hospital

  • Foto do escritor: Marcos Ferri
    Marcos Ferri
  • 9 de jan. de 2021
  • 3 min de leitura

Atualizado: 6 de mar.

Resgate de uma crônica antiga


Por Marcos Ferri

Foto: reprodução
Foto: reprodução

Texto publicado originalmente em 2012.


Escrevo este cansado texto a bordo de uma indigesta cadeira de ferro com um estofado que imita um couro dissipado há muitos anos. Estou no tradicional hospital Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, na Santa Cecília, parte badalada do centro velho.

 

A região é uma verdadeira encruzilhada: entre a riqueza de jovens médicos bebendo noite adentro e os prédios da linda Higienópolis que contrastam com os refugiados da Cracolândia, pobres viciados expulsos de seu hábitat como ratos, sendo obrigados a se acomodarem nos bairros vizinhos, nas portas de padarias ou nas escadarias da igreja.

 

Enquanto a noite de sexta-feira rola lá fora, papai está a se remexer sobre a desconfortável cama do leito 201. Uma sonda, um aparelho para colher líquidos das narinas, uma máscara de oxigênio, um tubo no abdome e um corte de dois palmos e meio na barriga.

 

Depois de uma cirurgia de hérnia, uma hemorragia e uma úlcera desconhecida, o homem forte repousa sem conforto algum, sem o direito de comer ou beber. Apenas um líquido estranho pinga na veia de minuto em minuto. A enfermeira disse que não é soro, mas para mim é. Faz as vezes da aguinha com açúcar que engorda as mãos.

 

O nosso homem de ferro alagoano não se rendeu à guerra. Com a ajuda de Deus, de todo o exército celestial e de bons médicos e enfermeiros, o “velho” saiu da UTI e ganhou o seu indulto.

 

Opa! Paro de reclamar um pouco. Trouxeram-me uma cadeira estofada que inclina (coisa fina). Agora escrevo sentado sobre uma cadeira bege de almofada ainda viva.

 

Um dos pacientes que divide o quarto se atrapalha com um banquinho. É quase uma da manhã, e ele bate ferro com ferro, tentando se movimentar com os tubos presos ao braço. O outro, de pescoço furado por causa de uma tireoide, não fala. Parece dormir, esfregando, inconscientemente, o rosto cansado e maltratado.

 

O da ponta, depois de reclamar do jejum, agora dorme calmamente. Zé Roberto, a travesti Sabryna (assim escrito em sua prancheta), sumiu no meio da noite. Passa de uma da manhã. Mesmo sem sentir as dores, imagino-me meio um Marcelo Rubens Paiva em “Feliz Ano Velho”.

 

Rotina, sofrimento em silêncio. O paciente do banco agora está sentado à beira da cama com sua bolsinha de sangue presa à cintura. Pelo menos, ele pode se sentar, papai só fica deitado por ordens médicas (e mesmo se quisesse levantar, não conseguiria). Apagaram a luz do corredor, mas o balcão da enfermagem, exatamente em frente ao quarto, permanece aceso. Sono de passarinho nos leitos da Santa Casa.

 

Num quase sussurro, papai pede para inclinar a cama. O sujeito da bolsinha de sangue dorme de barriga para cima, o da tireoide acorda e se levanta para fuçar a sua torneira de oxigênio. Numa angústia de querer falar e não poder, ele vai atrás de enfermeiras.

 

O do jejum se levanta, come e mija, como ele mesmo diz, e volta a dormir. Sabryna ressurge e deita-se em sua cama. Parece preocupada com a cirurgia que logo acontecerá. Dorme pesado e ronca. Bruta, diferente da doçura e deboche de outras horas.

 

Sons das bombas de ar e motores da lavanderia poluem o ambiente auditivo. Enquanto isso, há quem reclame por ficar em casa na sexta e murmura indignado.

 

Enfim, papai cochilou pontualmente a uma e meia da manhã, mas logo acordou com dores.

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Eu... um cara de comunicação...

Marcos é jornalista, músico e escritor. Autor do livro "A Linha do Trem" e do conto "A Casa da Praia" (presente na antologia "Possessão"). Ele também foi responsável pelo site Guitar Talks, dirigiu o documentário “O Mergulho Ancestral” e integrou várias bandas, entre elas a Doravante, na qual compôs algumas canções. Entre em contato (marcosferreira.work@gmail.com)!

 

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